Pós-escrito a Interestelar

A ficha técnica do filme você encontra aqui: http://razaodeaspecto.blogspot.com.br/2014/11/interestelar.html




Na vida de um artista reconhecido, chega um momento em que, dependendo do séquito de fãs que se acumula, qualquer produto passa a ser automaticamente incensado como genial – ou, no mínimo, é objeto de um nível de tolerância que outros criadores, menos célebres, não gozam alcançar. Penso, por exemplo, em Caetano Veloso, que rima "eta" com "Tieta" e fala uma porção de bobagens, mas continua considerado gênio da raça pela média da qualidade de sua produção passada.

Christopher Nolan é um cineasta com alguns filmes geniais – dente os quais incluo, sem temor, três: "Amnésia" (Memento, 2000), "O Grande Truque" (The Prestige, 2006) e "A Origem" (Inception, 2010). Sâo filmes com roteiros bastante originais e reviravoltas (ou finais relativamente em aberto) que se encaixam organicamente. Seu envolvimento nas obras vai além da direção, sendo produtor e pelo menos coescritor em boa parte de sua filmografia.

Ao contrário da maioria, eu não sou particularmente fã de sua abordagem para o Batman.  Se, por um lado, optar por um enfoque mais realista, após os desastres de Joel Schumacher, parecia uma opção sábia à época, o resultado final foram filmes do Batman com pouquíssimo Batman em tela, uma exploração muito frágil do visual do personagem – em especial nas cenas de ação - e um enfoque excessivo nos veículos. Apenas "O Cavaleiro das Trevas" (The Dark Knight, 2008) fica acima da média, e, ainda assim por conta da performance espetacular e supreendente de Heath Ledger como o Coringa, além do restante do elenco que compôs o núcleo principal (Gary Oldman, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhaal e Michael Cane, irrepreensíveis).



Sua nova jornada cinematográfica é Interestelar, filme de ficção científica que tem tido grande sucesso de público e sido bastante elogiado pelo apuro técnico no que diz respeito ao que seria uma experiência de viagem intergaláctica. Utilizando teorias atuais sobre buracos negros e buracos de minhoca ("wormholes"), Nolan flerta com a ficção científica clássica dos anos 1960, mas atualiza seu ritmo (e foi apenas impressão minha ou os robôs do filme são uma homenagem ao monolito de 2001?). De fato, o filme é muito bem produzido e dirigido – mas, por trás da grandiosidade a que se propõe, o filme acaba atingindo um resultado aquém do que poderia, em grande medida por derrapar em clichês e pieguismo.

Quando se sabe Steven Spielberg era o cineasta originalmente envolvido com a direção do filme, é possível entender uma série de fraquezas da construção do protagonista: um ex-piloto de testes da NASA, caipira mas destemido, e cheio de recursos (e não é à toa que o texano Matthew McConaughey foi escolhido e entrega com perfeição o papel). Ele cuida da sua família e tenta salvar, da melhor maneira, o mundo que o cerca, condenado por uma praga que destrói, ano a ano, diferentes cultivos. Temos também uma criança prodígio (Mackenzie Foy, excelente), que não se encaixa naquele projeto de vida medíocre e que recebe estranhas mensagens que parecem vir de um fantasma que interage com a imensa estante de livros de seu quarto.

Da montagem spielberguiana e manjada desse prólogo, somos levados à tal viagem intergaláctica, patrocinada por uma NASA agora semi-clandestina, que buscará encontrar um novo mundo a ser habitado pela humanidade – já que, em pouco tempo, será impossível plantar qualquer comestível, e mesmo respirar, em um planeta Terra no qual imensas tempestades de areia assolam o cotidiano da população. Como idealizador da missão, o quase onipresente nas obras de Nolan, Michael Caine (um ator, um trocadilho).

O segundo terço do filme – a viagem, propriamente dita – é o melhor de Interestelar. É aqui que são trabalhados os conceitos da astrofísica – cortesia de Kip Thorne, físico que, além de consultor, foi produtor executivo do filme. Aqui somos introduzidos aos personagens de Anne Hathaway, Wes Bentley e David Gyasi, cientistas com experiência "apenas de simuladores", que farão a contraparte do nosso herói, rústico, mas o único com vivência real em uma espaçonave. Enquanto isso, na Terra, a relatividade temporal fez que com que Foy envelhecesse para Jessica Chastain (sempre linda e competente).

E então, sutis como o brilho de uma estrela distante, dois problemas acometem o filme: a previsibilidade das situações e suas soluções e, mais notadamente, a escalada do pieguismo. Para discutir mais em detalhes, seriam necessários spoilers que eu evitarei. Mas não é difícil deduzir que o personagem de McConaughey está ali mais pra salvar sua família do que a humanidade. As escolhas dos personagens vão levar exatamente para onde se imagina que levarão e o amor – isso, o amor - passará a ser variável fundamental do filme.

A grande tese – que, em si, poderia ser explorada de forma muito mais rica – é a de que o amor, tal qual a gravidade, é uma força que consegue transcender dimensões. Fosse essa premissa discutida e testada, ou explorada por uma equipe de cientistas, e o filme alcançaria novos patamares. Entretanto, a ideia é lançada em um momento de crise, em um diálogo choroso e pelos motivos menos científicos possíveis, tornando-se, simplesmente, uma opção brega. Mas não se preocupem – nosso cowboy espacial conseguirá segurar a espaçonave à unha, tal qual touro bravo, e manobrá-la em uma cena que forçará a suspensão da descrença.



Dito assim, pode aparentar que o filme tem poucas qualidades. Definitivamente, não é o caso: o elenco, todo ele, tem performances muito boas; a trilha sonora de Hans Zimmer aparece com toques grandiosos quando precisa, e sabe silenciar; e toda a parte técnica transmite, como pretende, um ar de verossimilhança constante.

Há que se lamentar, entretanto, que Nolan tenha se recusado a filmar Interestelar em 3D. Há muitas obras em que o efeito torna-se caça-níqueis e desnecessário, mas neste filme teria sido espetacular usar a tecnologia para brincar com a percepção dos espectadores, em especial quando, em determinado ponto do filme, há visitas a um buraco negro, distorções de espaço-tempo e dimensões que transcendem as nossas três cotidianas. Ponto positivo, ainda, para o simbolismo do envio de certas mensagens por meio dos livros – em meio a uma tecnologia tão avançada, é bom saber que eles ainda servem para algo.


Superior a Prometeus (Prometheus, 2012), Interestelar ainda fica aquém de Gravidade (Gravity, 2013) como grande filme "espacial" dos últimos anos. Na dúvida, faça como Neil deGrasse Tyson, e eleja Contato (Contact, 1997) - com o próprio McConaughey – como o grande filme de ficção científica verossímil da sua coleção. Nolan segue um cineasta confiável: assistir a um de seus filmes é garantia de uma obra bem produzida e, no mínimo, instigante. Mas tudo - até sua genialidade - é relativo, não?  

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