DEMOLIDOR (parte 2 de 3)


- a primeira parte deste texto você encontra aqui;
- a continuação deste texto, aqui.


Charlie Cox interpreta, com absoluta competência, um Matt Murdock de várias camadas, que vão da profunda culpa católica aos questionamentos sobre o limite entre sistema legal e vigilantismo. É convincente como o advogado aparentemente frágil pela cegueira e como vigilante furioso, que nem sempre para de bater em um criminoso ou informante só porque ele já está subjulgado. Seus dramas morais jamais escorregam para o pieguismo, o que seria muito fácil em uma abordagem mais preguiçosa. 


O "Foggy Nelson" de Elden Henson consegue escapar da principal ameaça de um personagem como ele: o de ser apenas um alívio cômico em uma série densa. De fato, ele traz jovialidade e alegria a algumas cenas, em contraponto à seriedade de Murdock. Mas suas piadas ou comentários divertidos são bem encaixados nos diálogos, e sem recorrência incômoda. Ele é uma pessoa divertida, não um bobo da corte. A química entre ele e Cox convence que ali há uma amizade profunda e verdadeira, que construiu sonhos juntos nas aulas e nos botecos da faculdade. Essa sensação de honestidade entre os dois faz com o que o espectador se preocupe com os personagens, e torça por eles quando sua relação é abalada por certos eventos da série.

Deborah Ann Woll está longe de ser apenas a loira atraente da história. Ela passa de vítima das armações criminosas a primeira cliente do escritório "Nelson e Murdock"; daí a secretária (inteligente e participativa, nada de dama indefesa ou bibelô cênico) dessa firma, e vetor de retomada do equilíbrio da relação afetiva entre os dois advogados, em determinado ponto, até investigadora ativa das áreas escuras do passado de Fisk.

E aqui é preciso falar de Vincent D´Onofrio. Ele realmente faz um excelente Rei do Crime, tanto que roubou a série para ele. Seu Fisk é um homem solitário, obstinado, metódico. Usa sempre as mesmas cores, toma sempre o mesmo café-da-manhã em sua cobertura clean. Nem de longe se trata de um antagonista monofacetado: sua história de vida, apresentada no episódio oito (para mim, o melhor produzido), deixa um embrulho no estômago e faz entender porque, apesar de polido e respeitoso no trato, parece sempre pronto para devorar, destruir, dilacerar completamente quem o desagrade ou esteja em seu caminho. Sua interpretação é tão dolorida que faz com que nos peguemos torcendo por ele, quando a vida lhe ameaça com impotência diante de situações extremas, mesmo que saibamos estar diante de um homem violento e impiedoso. Nunca imaginei aquele uso para uma limousine. E, permitam-me, ele é tão durão que namora a mãe do Super-Homem (Ayelet Zurer, interpretando uma elegantíssima Vanessa com ares de Lady Macbeth).



A série chega a flertar com uma metáfora de oposição artística:  enquanto Murdock afirma que sua capacidade visual lembra um quadro impressionista (de evocação de sensações, mais do que de detalhes de traço, tais quais as emoções e a moral do protagonista), Fisk é fascinado por um determinado quadro de arte moderna (e as razões desse fascínio, quando explicadas, fazem o espectador encolher na cadeira). Fisk quer desconstruir a Cozinha do Inferno e reconstruí-la de acordo com sua visão e interesses, sem se importar tanto as regras estabelecidas, algo que não deixa de descrever, até certo ponto, a postura iconoclasta dos artistas plásticos e pintores contemporâneos.



Antes que os entusiastas automáticos me decepem os membros e me joguem no Hudson, é preciso dizer que sim, a série tem suas falhas e fraquezas.  Por exemplo – e me autorizo o spoiler aqui porque acontece nos primeiros minutos do primeiro episódio – bandidos são confrontados por Murdock, trajado em seu uniforme negro, entre containers de um porto. A associação à primeira aparição de Batman em sua adaptação de 2005 é inevitável e soa quase como plágio – o que destoa da alta qualidade do resto da temporada.

Em algumas cenas, especialmente à noite, a escolha por uma fonte chapada de iluminação (amarela, ou violeta, ou esverdeada) incomoda um pouco. Possivelmente, a ideia era remeter aos quadrinhos, mas, como está, destoa da ambientação realista da série. Por falar em cores – e pode soar uma tolice – o fato de Cox não ser ruivo é um ponto negativo. Não apenas desrespeita o visual icônico dos quadrinhos, como enfraquece o passado de família irlandesa do personagem. São tão poucos os personagens ruivos, que é triste descaracterizarem esse. Cotas para ruivos, já!

Ainda sobre o aproveitamento de imagens icônicas do personagem, uma determinada luta de boxe importante no passado de Murdock é mencionada, mas não mostrada, deixando certo vácuo visual na origem do personagem. Pela estrutura narrativa da série, com flashbacks recorrentes, pode ser que decidam dar, em algum momento do futuro, a atenção visual merecida a esse episódio da história do Demolidor.

Como é inevitável em produções sobre personagens inverossímeis que decidem por um tom realista, quanto mais os elementos fora do comum são apresentados, mais pode aparecer uma gota aqui e outra ali de esquisitice (quem acompanha a série Arrow deve entender bem o quê aqui se identifica). Assim, a subtrama de mudança do uniforme do personagem ou a aparição de um ninja em um bairro decadente de Nova York geram umas patinadas – que, ainda bem, não chegam a comprometer demais a série, em especial porque as soluções encontradas são fortes, e aceitáveis para sua coerência interna.

Curiosamente, a movimentação de Matt Murdock quando travestido de vigilante noturno é menos fluida do que poderia. Desde a popularização do parkour, é relativamente imperdoável perceber uma certa falta de fluidez, um certo "peso" nas cenas do Demolidor subindo e descendo escadas, ou pulando pelos telhados.


E então chegamos ao episódio nove. A partir daqui, e até o finale, caso o espectador não conheça detalhes das histórias em quadrinhos do personagem, vai continuar apreciando a história, que tem uma reta final tensa e bem amarrada em sua lógica narrativa – embora nem sempre seja a melhor das ideias deixar para resolver quase tudo no episódio final, em especial em uma série que vinha aparentemente sem pressa em seu desenvolvimento... Se você é fã do personagem, entretanto, pode começar a ter alguns sérios incômodos com as decisões de enredo tomadas - as quais discuto na próxima parte desta crítica.

A parceria Marvel/Netflix achou um veio de ouro. As primeiras respostas de crítica e público são extremamente positivas. Sem exigir muito da memória, os materiais clássicos dos quadrinhos do personagem garantiriam quatro ou cinco temporadas de altíssimo nível. O desafio, já que o nível foi tão elevado, é manter a ambientação e a credibilidade narrativa nas séries seguintes previstas (Luke Cage, A.K.A. Jessica Jones e Punho de Ferro).


Se você não viu Demolidor ele também não ainda, vá ver, vale a pena.

A crítica da série acaba aqui. Agora vou conversar um pouco com os espectadores pós-fim-de-série, em especial os connoisseurs do personagem

Até mais.


(conclui na próxima edição)

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