DEMOLIDOR (parte final)


Esta é a última parte da crítica à série Demolidor, da parceria Marvel/Netflix.

A primeira parte está aqui, e a segunda, aqui.


Discute-se aqui alguma decisões de enredo da primeira temporada, bem como suas relações com as histórias em quadrinho do personagem. Não haveria como escrever este texto sem comentar cenas reveladoras da série. Portanto...


ALERTA DE SPOILERS, MUITOS SPOILERS, para os parágrafos seguintes.




SPOILERS, hã?




Se, por um lado, foi muito interessante ver várias sementes plantadas na série para outras tramas e relações com o restante do universo da Marvel (Madame Gao, Roxxon, Steel Serpent, etc), por outro, alguma opções de roteiro (em especial, mas não exclusivamente, nos últimos cinco episódios) desta temporada trouxeram vários gostos amargos.

Existe um pensamento meio preguiçoso que reza que literatura/quadrinhos e cinema/TV "são meios diferentes, portanto demandam tratamentos diferentes". Faz sentido, claro. Entretanto, não existe nada mais próximo do que um arco narrativo de quadrinhos do que uma série de TV, e nada mais próximo de uma storyboard do que uma história em quadrinhos. Isso significa que, partindo de uma fonte consagrada, e que amealhou milhões de fãs (a ponto de justificar uma adaptação em outro meio, correto?), é preciso mexer muito pouco para acertar a mão. Um exemplo claro é a questão dos uniformes - em que, de fato, cores muito espalhafatosas ou cuecas por cima das calças de lycra podem desmoralizar mesmo o melhor dos roteiros.

Assim, várias opções de roteiro da série são questionáveis. Em primeiro lugar, a presença da personagem Claire Temple/Night Nurse é interessante para constituir um mínimo apoio médico a Murdock, além de estabelecer o primeiro espaço possível de ligação com a série de Luke Cage, uma vez que a Night Nurse é do "elenco" regular das histórias daquele personagem. Mas para que inserir o interesse amoroso entre os personagens?  Perde-se tempo de tela, e perde-se a chance de se concentrar na afeição por quem realmente importa: Karen Page.

Se Elektra Natchios foi a paixão traumática avassaladora da vida de Matt Murdock, Karen foi seu grande amor. Passada toda a temporada, há apenas leves pistas do interesse dela por Matt, e perto de zero reciprocidade. Teria sido muito mais interessante estabelecer uma tensão mais óbvia entre os dois, mesmo que não concretizada, e, quem sabe, o inicio de um potencial triângulo amoroso com Foggy.

O episódio com Stick é igualmente estranho. Embora muito bem interpretado e caracterizado, não era necessário o recurso da dobradura para estabelecer o afeto entre Murdock e seu mestre, nem o confronto físico entre mestre e ex-pupilo pareceu um recurso narrativo inteligente. Outro detalhe é que o tempo de treinamento do jovem Matt parece muito curto, incapaz ter impacto profundo na preparação do heroi. Há pistas claras de que ainda veremos Stick e os Virtuosos (ei, bom nome de banda...), e isso, pelo menos, é uma boa notícia.

A primeira aparição do Tentáculo, na figura de Nobu, preocupou em um primeiro momento. O duelo deve um levíssimo tempero jyraianiano, compensado, ao menos, pela alta violência e desfecho incendiário (see what I did here?!!).

A decisão de promover um confronto físico entre Murdock e Fisk no meio da temporada pareceu-me não apenas desnecessário, como fraco em execução. Aqui temos o cacoete do discurso do vilão no meio de uma briga, além da perda da oportunidade de descobrir a identidade do mascarado ou de derrotá-lo em definitivo. Em uma série que se apega ao realismo, destoou.

O mesmo serve para a decisão de revelar a identidade secreta de Murdock a Foggy. Sim, isso acontece nos quadrinhos, mas fazê-lo tão cedo, e claramente só com o pretexto de ter um episódio de flashback da amizade dos dois, mata a possibilidade de explorar mais e melhor essa tensão em um momento mais adequado no futuro. A fratura na amizade dos dois poderia ter sido gerada por outro motivo (como, por exemplo, mal entendidos na investigação, desconfianças mútuas, ou ciúmes de Karen), o que possibilitaria o gancho para o tal episódio sem gastar um cartucho tão forte para o futuro.

A trama da criação do uniforme do personagem possivelmente vem do entendimento dos roteiristas de que seria necessário arrumar uma proteção maior para um guerreiro urbano. Remeteu, novamente, ao Batman-agora-totalmente-calcado-na-realidade-de-Nolan. Eu preferia ver um lutador melhor, sem criar dependência e fragilidade em relação ao personagem de Melvin Potter. Salvo um brevíssimo período na história do personagem (na saga "Fall from grace"), o Demolidor nunca teve como ferramenta de atuação um uniforme especial. Trata-se, nesse caso, de uma descaracterização mais incômoda do que a análise superficial permite. Ao menos, o resultado visual ficou bastante bom (embora seja inevitável perguntar por que se "as partes pretas protegem mais, e as partes vermelhas podem desviar um facada... ou não", como explica Melvin, a região do coração, por exemplo, é vermelha, e não preta.

Por fim, as mortes. A de Wesley, passa, embora tenha sido uma pena perder a excelente interpretação de Moore. Quanto à de Owsley, eu ainda quero apostar que não foi uma morte real (uma vez que a história do Coruja inclui exatamente uma volta a andar com a ajuda de um exoesqueleto). E Urich.

Urich. URICH. DE QUEM FOI A LAMENTÁVEL IDEIA DE MATAR BEN URICH??? Não apenas a morte não existe nos quadrinhos, como o personagem tem papel muito importante em sagas posteriores do Demolidor, como a saga de Elektra e a Queda de Murdock. Não teremos o arco de histórias de Urich investigando a identidade secreta de Murdock (e, se não teremos, para que diabos - see what I did here, again?! - a cena em que ele deduz o passado boxeador do homem mascarado?). Não teremos uma adaga sai magistralmente arremessada por Elektra atravessando o tronco de Urich. NÃO TEREMOS URICH NO UNIVERSO MARVEL CINEMATOGRÁFICO.

Não, Goddard, não precisava. Urich não é um personagem de segunda. É um heroi sem poderes nesse universo ficcional. O cronista das vidas do Demolidor, do Justiceiro, do Homem-Aranha. Um coadjuvante recorrente excelente para muitas histórias. Era preciso um repórter para cutucar o Rei do Crime?  Criasse um, fizesse os espectadores se afeiçoarem a ele e o matassem com requintes de crueldade, mostrando Urich herdando a investigação para séries futuras. Isso sem falar na trama, tirada sei lá da onde, da esposa doente de Urich, que ocupa tempo demais de tela e quase só serve como desculpa para Karen justificar a visita ao asilo onde mora a mãe de Fisk. Péssimo, péssimo, péssimo. Muito bem encaixado na lógica interna da série, mas pergunto: PARA QUE esse tipo de adaptação???



A série do homem sem medo fez jus, e não teve receio de ousar no peso das histórias, na violência e no realismo. Mas uma série sem medo corre o risco de virar uma série sem noção.

Vamos falar de coisa boa?  Vem comigo.

Dá gosto imaginar o que vem por aí. Há que se investir no namoro entre Karin e Matt, talvez a ser abalado pelo retorno de Elektra à vida do advogado. A saga de Elektra, contratada por Fisk para se vingar do Demolidor. Flashback do assassinato do pai de Elektra. O Mercenário contratado para matar Elektra, quando ela não consegue executar Foggy Nelson, seu conhecido de faculdade. Morte de Elektra. Episódio "Ela está viva". Ressurreição de Elektra. Queda de Murdock, sendo revelado finalmente o passado obscuro de Karen, que os fãs já sabem qual é. O demônio da guarda, com Karen morrendo em decorrência da AIDS. Identidade revelada. Temporada na cadeia, com Danny Rand ocupando o uniforme do Demolidor. Shadowlands. Uma última temporada com Ann Nocenti no roteiro para ferrar tudo.

Material para aproveitar é o que não falta. Torçamos por boas escolhas.

Fim?

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