DEMOLIDOR (parte 1 de 3)





Gênero: policial, drama, ação
Direção: vários diretores
Roteiro: Drew Goddard
Elenco: Charlie Cox, Vincent D´Onofrio, Deborah Ann Woll, Elden Henson, Vondie Curtir-Hall, Rosario Dawson, Toby Leonard Moore, Bob Gunton, Ayelet Zurer, Peter McRobbie, Scott Glenn, Wai Ching Ho, Peter Shinkoda, Vladimir Ranskahov, Amy Rutberg, Adriabe Lenox, Judith Delgado, Matt Gerald
Trilha Sonora: Patrick Doyle
Duração: 13 episódios de aproximadamente 55 minutos.
Ano: 2015
País: Estados Unidos
Cor: Colorido
Estreia: 12/04/2015 
Distribuidora: Netflix
Estúdio: Marvel Studios
Classificação: 18 anos

Sinopse: advogado cego usa seus sentidos superaguçados para combater o crime, dentro ou fora dos limites da lei.

OBS: Este é a primeira parte (de um total de três) da crítica da série.





 Nota do razão de aspecto





Uma série com qualidade é uma série sem medo.

"Demolidor"(Daredevil, 2015), primeiro produto da parceria entre os estúdios Marvel e a Netflix, teve sua estreia mundial no último dia 10 de abril. Doze anos se passaram desde a última tentativa de adaptação do personagem criado por Stan Lee e Bill Everett em 1964. A relativa demora deu-se tanto pelo período de transição do retorno do direitos de filmagem da Fox para a Marvel, quanto pelo fracasso do filme estrelado por Ben Affleck em 2003.

Na mosca: os anos de espera valeram à pena, e mesmo aqueles que jamais ouviram falar do personagem deveriam incluir os treze episódios lançados nesta primeira temporada em sua lista de favoritos. Drew Goddard, responsável criativo pela série, foi corajoso em optar por uma série com classificação indicativa para maiores de dezoito anos - o que seria impensável em um produto da Marvel nos cinemas. Veterano escritor de episódios de séries de TV (como "Buffy", "Angel", "Alias" e "Lost") e filmes ("Cloverfield", "Guerra Mundial Z", "Perdido em Marte"- a ser lançado este ano - e "O segredo da cabana", no qual, além de roteirista, estreou como diretor), Goddard cria uma série policial, noir, extremamente violenta e voltada muito mais para a construção dos personagens do que para as cenas de ação (ainda que elas estejam lá, meu adolescente leitor).  Como resultado, temos uma história dura, cruel em muitos momentos e bastante diferente do que já foi visto no universo cinematográfico da Marvel.

Para quem não conhece o personagem, Matt Murdock (Charlie Cox) é um advogado cego e idealista (hummm...), em início de carreira, que monta um escritório com seu melhor amigo e colega de faculdade, Franklin "Foggy" Nelson. A ideia é ajudar os moradores da Cozinha do Inferno, bairro de Nova York onde foram criados, assolado pelo crime e pela especulação imobiliária – e é curioso saber que, na vida real, o bairro chama-se Clinton, e, se foi reduto de imigrantes irlandeses pobres no passado, hoje é uma área de classe média, agradável e de alugueis bem mais caros, após pelo menos duas grandes ondas de gentrificação. Murdock, entretanto, não é um cego qualquer: o mesmo acidente que o cegou aos nove anos de idade aguçou seus outros sentidos em níveis sobre-humanos, e o dotou de um senso de radar que substitui, de certa forma, sua visão. Utilizando essas novas ferramentas, e seu treinamento marcial, Murdock combate o crime como advogado e, quando necessário – quase sempre em um Congresso uma cidade corrupta - como vigilante mascarado.

A partir dessas premissas, o arco narrativo busca retratar os conflitos e o amadurecimento de Murdock nessa decisão de extrapolar os limites legais para limpar seu bairro. De um outro lado, seu antagonista principal é Wilson Fisk (Vincent D´Onofrio), discreto empresário, também criado na Cozinha do Inferno, que utiliza de influência política, corrupção policial e alianças com lideranças criminosas da cidade, com o sincero objetivo de "fazer uma cidade melhor", em seu entendimento.

Reside aí um dos maiores acertos da série: não é uma história sobre o vigilante Demolidor ou sobre o Rei do Crime – nomes que, aliás, são sequer  mencionados. Quanto mais sabemos sobre Murdock e Fisk, mais é estabelecido um paralelismo entre os dois: filhos de infâncias traumáticas, turbulentos em suas emoções escondidas e sobreviventes em uma cidade difícil, mas que amam.

Importam, aqui, os indivíduos e suas sagas internas, bem como a cidade de Nova York, "personagem" importante da trama, e retratada (sobretudo nas cenas diurnas) com realismo e alma novaiorquinos. O mesmo vale para Foggy (Elden Henson), Karen Page (Deborah Ann Woll), Ben Urich (Vondie Curtis-Hall), Vanessa (Ayelet Zurer) e Claire Temple (Rosario Dawson), coadjuvantes com longos momentos de protagonismo. Até os criminosos tem personalidades bem desenvolvidas (como Wesley, assessor de Fisk, interpretado com carisma por Toby Leonard Moore; Leland Owlsley - que os fãs antigos do personagem sabem bem quem é, vivido por Bob Gunton, além da dupla de irmãos russos). Em termos de roteiro e interpretação, os personagens são construídos, devagar e profundamente, tem arcos afetivos e interesses próprios. Ninguém parece jogado ali apenas para fazer figuração ou para ser escada narrativa.

Outra qualidade da obra é o respeito pela inteligência do espectador: há uma considerável aversão a cenas ou diálogos meramente explicativos. Entendemos os usos e limites dos poderes de Murdock, assim como motivações de personagens e as tramas dentro dos episódios (e aquelas de longa duração), pouco a pouco, sem que alguém precise parar para revisar a trama ou mastigar pistas e dicas sutis dos relacionamentos. E são longos diálogos. A série não é editada para acelerar, e sim para aprofundar, como um bom "thriller" político ou drama policial.

A proposta da série busca o realismo, e isso é reforçado em diversos momentos. Russos conversam em russo entre si, e não em inglês com sotaque - e o mesmo vale para personagens de língua espanhola, chinesa ou japonesa. E não são apenas breves diálogos: há um determinado episódio em que mais de um terço de seu tempo é ocupado de cenas não faladas em inglês – o que mais uma ousadia em termos de produções norte-americanas. E mais: em uma cena em que os dois personagens falam inglês e chinês, a língua falada para a longa cena não é a de Stan Lee...

Esse realismo é transmitido também nas cenas de ação e lutas. Matt Murdock não é Bruce Lee ou o Neo (de Matrix): ele bate e apanha, mas sem a plasticidade dos filmes de artes marciais. As lutas são "feias", difíceis e violentas; há sangue e muitos erros: um chute martelo rodado pode até funcionar, mas fazer o herói cair no chão desequilibrado; as pessoas arfam depois do esforço físico, e não são dois ou três socos que derrubarão um adversário, como em jogos de computador ou filmes de ação mais medianos.


O Demolidor, ainda antes de ganhar este nome, está começando e é inexperiente: tenta investidas que não dão certo, e apanha. Ah, como apanha o Murdock nesta série. Apanha tanto que, no terço final da temporada, começa a incomodar um pouco a inapetência do personagem em ganhar uma briga sem sair todo quebrado (afinal, além de sentidos mais aguçados, supostamente há anos de treinos prévios à série), e a tentativa de realismo ameace ligeiramente a suspensão da descrença no que diz respeito à sobrevivência do personagem.


A organização dos episódios ao longo da temporada foi feita de forma interessante: o começo da temporada apresenta os personagens e a situação atual, seus desafios e a posição primária de cada protagonista e coadjuvante perante o contexto que os cerca. Há uma aprofundamento natural de Murdock, com flashbacks da sua infância nesse primeiro momento. Lá pelo fim do primeiro terço de episódios, quando o embate Murdock versus Fisk já está bem estabelecido, dá-se um passo atrás e, sem que a trama presente se disperse, são apresentados outros elementos do passado da série, como o homem que treinou Murdock (vivido com a adequada canalhice por Scott Glenn), a formação e fortalecimento da amizade de Murdock e Foggy na faculdade, e a infância de Wilson Fisk.

(continua...)

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