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GUERRAS DOMÉSTICAS: PAI PATRÃO E VIVIANE AMSALEM

Nosso colunista convidado Diogo Almeida junta dois filmes em uma só crítica: Pai Patrão (1977) e O Julgamento de Viviane Amsalem (2014). Confira !

           Diogo Almeida unindo obras

Talvez um dos temas mais difíceis de abordar na criação artística seja o das relações domésticas. Trata-se, em essência, de falar do banal dos banais - discussões de casais, relações entre pais e filhos, violência doméstica, etc -, de comédias e tragédias da vida privada sobre as quais todos nós temos alguma vivência, algum conhecimento. É dentro de quatro paredes, afinal, que se travam as primeiras batalhas pela independência, pela individualidade e até pela afirmação da sexualidade. Poucos temas são tão universais.

Abordados de maneira pedestre, como o fazem os jornais e as telenovelas, esses episódios são dignos de atenção apenas de voyeuristas e fofoqueiros. Nas mãos de grandes mestres - Tolstói vem à mente -, porém, adquirem enorme potência dramática ao fazerem refletir de maneira nova assuntos mil vezes repisados. Dois filmes - um novo, outro antigo - traçam as linhas desse front com gênio e intensidade. Começo pelo antigo: Pai Patrão (1977), o mais conhecido filme dos irmãos (Paolo e Vittorio) Taviani. Produzido em meio à maravilhosa onda do cinema político italiano dos anos 60 e 70 - época em que até um espirro carregava conotações políticas -, os Taviani tinham uma pegada mais lírica, mas não menos engajada, do que a maioria de seus contemporâneos, como Elio Petri e Damiano Damiani.

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Em Pai Patrão, os Taviani filmam um pequeno grande épico ambientado na comunidade rural da Sardenha. Um menino, Gavino Ledda, é retirado da escola por seu pai para trabalhar no pastoreio, onde fica vinte anos a cuidar de cabras. Com tal sinopse, os idealistas poderiam evocar belas imagens da campanha sarda, a passagem bucólica dos rebanhos e a inocência de meninos pastores a compor, com suas liras, odes à natureza. Ledda engano. O filme é um grande libelo contra a brutalidade e a ignorância presentes na tradição rural. O campo dos Taviani não tem nada de bucólico, e a vida do menino transforma-se numa prisão tão logo deixa a escola, aqui representada como o lugar do convívio com o outro e de expansão dos horizontes através da educação. (É possível argumentar que a escola representa outro tipo de prisão que necessita de um tipo específico de rebeldia, como bem mostram Zero de Conduta, Se…” e Os Incompreendidos, mas este é assunto para outro dia).


Ledda terá que esperar a idade do alistamento militar para se libertar do jugo violento do pai, deixar para trás o analfabetismo e conquistar seu lugar ao sol. Não por acaso, a história é adaptada do romance autobiográfico (publicado em 1975) do Gavino Ledda real, que, de pastor, acabou se tornando escritor e linguista. O filme traz um prólogo e um epílogo onde aparece o autor, que instiga a reflexão sobre sua experiência de vida e faz um alerta às famílias que abandonam seus filhos à ignorância para que estes auxiliem na subsistência econômica. Nestes casos, o Pai se torna pouco mais que Patrão, a escravizar a esposa e os filhos em nome de seus sonhos de riqueza.


Há muito mais a falar sobre o filme. Sobre a importância, por exemplo, do aprendizado da linguagem para a emancipação de Ledda. A princípio estrangulada no convívio brutal e quase mudo com o pai, a linguagem terá papel fundamental para abrir o mundo ao menino. Destaco uma engraçada e comovente cena em que Ledda e um amigo do Exército (breve participação de um jovem Nanni Moretti) conversam em latim em meio a manobras de tanques blindados. Mas é hora de falar de outra batalha na linha de frente doméstica.


O Julgamento de Viviane Amsalem (2014), em princípio, pouco ou nada tem a ver com a obra dos Taviani. Co-produção franco-israelense ambientada em Israel nos dias atuais, o filme narra, com economia de recursos, o longo e doloroso processo de divórcio de um casal unido por 30 anos. Porém, tanto O Julgamento…” quanto Pai Patrão se filiam à mesma espécie de inconformismo com o status quo das relações sociais e afetivas, que ocasionalmente produz grande literatura e grande cinema.

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Com simplicidade narrativa - entram em cena um mero punhado de atores e uma única locação, a sala de audiências de um tribunal -, o filme promove uma tour de force ao longo de cinco anos, através de audiências anódinas conduzidas por juízes indiferentes, nas quais se debate a situação atual da mulher em Israel e, por extensão, no mundo contemporâneo. Viviane Amsalem (a magnífica atriz, co-roteirista e co-diretora Ronit Elkabetz) quer se separar de Elisha (Simon Abkarian, em ótima e discreta atuação, semelhante à que ofereceu em Uma História de Loucura). Em Israel, porém, inexiste a instituição do casamento civil, fazendo com que tanto o divórcio quanto o matrimônio sejam decididos pelo clero. A dissolução de uma união só pode ser concedida pelo homem perante um rabino, e Elisha, por motivos ambíguos, nega-se a concedê-la a Viviane. A partir dessa decisão, a união dos dois será passada a limpo pelo desfile - às vezes cômico, frequentemente trágico - de testemunhas, entre parentes, amigos e vizinhos dos dois, que dissecarão a relação. O ônus da prova, porém, sempre paira sobre Viviane. Como mulher, ela sempre é apontada como a responsável pelo fracasso do casamento. Não à toa, o título do filme indica mais um processo criminal contra Viviane do que uma dissolução conjugal.

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O que poderia se tornar um novelão escrito por Manoel Carlos é uma obra contundente e arrebatadora. A protagonista pouco fala, traduzindo, em gestos e expressões, sua tentativa desesperada de se ver reconhecida como um ser humano capaz e completo, condição que lhe é negada pela força das instituições e da tradição de seu país. Qualquer espectador(a) brasileiro(a) com um mínimo de sensibilidade verá paralelos estreitos com a desigualdade de gênero no Brasil: homens a explicarem a uma mulher como esta deve se portar, falar e vestir; que a vêem como a principal responsável por construir um lar de paz para os filhos e para o marido, como alguém que não merece a mesma liberdade desfrutada pelo homem. Mais que um drama de tribunal, O Julgamento de Viviane Amsalem representa uma eloquente acusação sobre o meio de ser de uma sociedade.  É menor em escala, mas quase tão bom quanto o celebrado A Separação (2011), filme iraniano de temática semelhante.

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O filme - dirigido pelo casal Ronit e Shlomi Elkabetz -, aliás, é a terceira parte de uma trilogia iniciada por To Take a Wife (2004) e continuada por Sete Dias (2008), que mostra a trajetória do casal Amsalem. Estou curioso para continuar a presenciar esses semblantes da vida privada - talvez eu também não passe de um voyeurista -, e devo falar deles em textos futuros.



por Diogo Almeida

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